I Semana de Gênero e Diversidade da UFBA – Conferência de Abertura
Publicado em 04 de dezembro de 2014
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CONFERÊNCIA DE ABERTURA – SEMANA DE GÊNERO E DIVERSIDADE

Profa. Dra. Mariângela Nascimento – NEIM/BEGD/UFBA, coordenadora do Observatório Feminista da Política

A DEMOCRACIA, A MULHER E A REFORMA POLÍTICA NO BRASIL


O tema de abertura da Semana do Bacharelado de Gênero e Diversidade é a Mulher na Política, o caminho que escolhi como ponto de partida e como guia para poder transitar nesse emaranhado terreno é a democracia.

A história política do Brasil, não é propriamente a história da democracia, infelizmente. Antes dessa experiência que estamos vivenciando hoje, a democracia sempre se constituiu em breves ensaios, tão frágeis que as ameaças sofridas se constituíram em sua remoção imediata.
A democracia, como aprendemos e compreendemos, vem associada a dois conceitos-chave: o de liberdade e o de igualdade. Doses diferentes desses princípios desenham formas diversas de democracia.
No Brasil, o grito de independência se deu em nome da liberdade. Entretanto, o reconhecimento da autoridade de Pedro I não foi nada pacífico. Por exemplo, a adesão dos senhores, da Casa Grande, deu-se quando se convenceram que a independência garantiria o modelo escravista.
A monarquia constitucional, mesmo depois da independência, foi a garantia da preservação da escravidão. O Estado brasileiro se constituiu em uma unidade jurídica e territorial para evitar que uma província qualquer abolisse unilateralmente a escravidão. Eis a razão da unidade territorial brasileira. Eis o limite e a nascente história política do Brasil, em que um Código Civil só será promulgado apenas em 1917.O que mostra que no Brasil a sequência histórica dos direitos, estudada por Marshall, não foi aplicada.
Um golpe proclamou a República em 1889. O país se tornou uma República da noite para o dia, a sociedade não participou desse momento. Instituiu-se a federação, mas a autonomia só valeu para alguns estados – os ricos e armados.
Instaura-se o Presidencialismo com democracia de fachada. Apesar da República, a pena de morte e os castigos corporais continuaram a exemplo dos acontecimentos que ganharam grande visibilidade pública, a Revolta dos Marinheiros, de 1910, e a tragédia do navio Satélite, quando os oficiais se vingaram dos amotinados jogando-os ao mar ou abandonando-os na selva. Mas o que esperar de uma República que veio por decreto e que em 1897 promove o massacre do povo pobre e sertanejo de Canudos, por temê-los restauradores e ameaça à paz do país?
A república inaugurou o mito de que as rupturas políticas seriam necessárias e ganhos democráticos. O estado de sítio e a ameaça golpista tornaram-se recorrentes, coroados em 1964, que foi proclamada por seus adeptos como revolução democrática. Não podemos esquecer de que em 1962, apenas 24% da população adulta votavam.
No período da II grande guerra mundial, entre o nazismo e o stalinismo, Getúlio Vargas achava o seu Estado Novo liberal, orientando-se pelas diretrizes do fascismo.
Durante o regime ditatorial de 64 houve censura, cassação, tortura e morte, mas convivia-se com as eleições (restrita, não se votava para presidente). O que prova não ser o voto universal condição suficiente para a democracia.
O país chegou a década de 80 desesperançado. Emergíamos da ditadura, mergulhados numa crise econômica, com inflação, moratória, recessão e sem alternativas. O país do futuro era um fracasso. Mas, mesmo na década perdida de 80, entre erros e acertos, créditos e descréditos, brota a vontade de mudar. A sociedade começa a se organizar e o país se urbaniza. Indústrias e cidades criaram os seus problemas e, em meio a essas mudanças, ouve-se o último suspiro do homem cordial.
Em 1985, a Lei da Ação Civil Pública reconheceu direitos indisponíveis, difusos e coletivos: nasce daí um novo paradigma para a cidadania, um ponta pé para uma nova cultura política. A Constituição de 1988 chega e amplia os direitos sociais e políticos.
Apesar da forte presença da cultura autoritária na ordenação social, a década de 80 foi marcada por uma renovação significativa das práticas associativas. É o momento da transição democrática. Começa a despontar, a partir daí, a possibilidade real de um espaço público com participação dos vários setores sociais. Isso é verificado pelo reaparecimento do movimento social, da entrada de novos atores e de novas temáticas em cena.
Se, no campo político o país amadureceu, afastando a miragem da ruptura institucional, no campo econômico também cansou de truques mágicos, reconciliou-se com o mercado e construiu consenso em torno das reformas macroeconômicas. Na década de 90 a moeda tornou-se estável e fortaleceu a autoestima do país. O crescimento foi retomado. O espectro do elitismo e o terror ideológico foram afastados com a eleição de um operário à Presidência da República. Programas sociais foram e estão sendo implementados e ampliados, contribuído para minorar a pobreza.
Os segmentos sociais, a partir daí, emergiram como força organizada capaz de reivindicar e conquistar novos direitos, de ampliar o seu campo de atuação e de participar do jogo político eleitoral. As questões relacionadas a gênero, raça/etnia e sexualidade, juventude, entre outros, ganharam (e continuam a ganhar), destaque na disputa eleitoral. Não apenas no momento eleitoral, essas questões têm ocupado lugar central na agenda governamental, que tem traduzido suas reivindicações em políticas públicas.
No governo do presidente Lula foram criadas Secretarias especiais: a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), em 2003. Essa Secretaria possibilitou, no plano federal, que as questões específicas às mulheres fossem alçadas ao nível ministerial e transferidas, de forma mais explícita, para a agenda das políticas públicas. Do mesmo modo a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e a Secretaria de Diretos Humanos, numa relação direta com os movimentos sociais, conseguiram traduzir suas reivindicações em políticas públicas e projetos em Lei, reconhecendo a força política desses segmentos sociais.
Tudo parece caminhar nos trilhos, mas a coisa não é bem assim. E cabe a seguinte pergunta: mas afinal o que está dando errado?
Em primeiro lugar, é fato que valores e práticas do passado reacionário continuam presentes e influenciando a vida política, fragilizando o processo democrático. Fato que ganha maior visibilidade em época eleitoral com as práticas do clientelismo, personalismo, compra de voto, machismo, racismo. Trazendo prejuízos e distorções para a nossa democracia.
A democracia, que parecia caminhar nos trilhos, estava (e está) sendo carcomida silenciosamente pelo vírus do autoritarismo, de difícil remoção.
As manifestações nas ruas que tiveram início em junho de 2013, com vozes múltiplas e dissonantes expressaram a recusa a esse modelo político vigente que contraria o espírito democrático – um modelo que coloca em prática uma governança que prescinde da vontade dos cidadãos. Recusa, traduzida na prática, pela reação de muitos manifestantes contra as bandeiras partidárias. É esse sentimento de recusa que coloca em evidência a crise das instituições da democracia representativa e da recusa desse tipo de democracia onde a maioria dos representantes políticos estão alheios e distanciados dos anseios da população, obstruindo assim os caminhos da verdadeira democracia. É também a recusa desse sistema partidário que deixou de ser espaço de ressonância das vontades populares, e contraíram um autismo político que só conseguem representar a si mesmos. É nesse cenário, que as redes sociais assumem o papel de agente mobilizador e catalizador dos anseios populares. As redes sociais hoje se tornaram o espaço da palavra, da opinião e da interação comunicativa, e isso tem que ser levado em conta.
As instituições representativas tornaram-se, portanto, anacrônicas e perderam a sintonia com a própria sociedade.
Por isso, a reinvenção das instituições representativas passa pelo reconhecimento dessas mazelas presentes, entre tantas, está a crescente presença do poder econômico na disputa eleitoral, que vem há décadas acontecendo nos momentos eleitorais brasileiros. Os altos custos das campanhas têm sido uma das fontes da corrupção da administração pública e promovido um sistema de trocas e negociações espúrias que irriga as velhas práticas do nosso passado autoritário.
O alto custo das campanhas tem deixado de fora da disputa eleitoral vários setores sociais, que passam a ser sub-representados, acentuando a crise política. Mulheres, negros, índios, população LGBT, jovens, entre outros, estão praticamente à margem da disputa política eleitoral, mesmo com a obrigatoriedade das cotas partidárias para as mulheres candidatas.
As conquistas sociais, entretanto, não tem conseguido influenciar o jogo político e não alteraram o quadro de sub-representação das mulheres na política. O Brasil é um dos países com piores índices de participação de mulheres no Legislativo e no Executivo, apesar da presidenta: de cada dez eleitos, nove, em média, são homens. E, apesar de termos elegido uma mulher para o mais alto cargo político do país, a presidência da República, e pela segunda vez, o Brasil ocupa o 156º lugar num ranking de 188 nações em relação a participação da mulher na política e a diferença entre homens e mulheres na ocupação de cadeiras no Parlamento.
Desde a conquista do direito ao voto pelas mulheres, a sua presença no Parlamento é pequena. As mulheres são 52% do eleitorado, mas menos de 10% ocupam cargos no legislativo.
Hoje, no Congresso, as representantes do sexo feminino são apenas 9 dos 81 representantes no senado e 45 dos 513 da Câmara dos deputados. A desproporção se repete nos Legislativos e Executivos estaduais e municipais. Os resultados eleitorais desse ano revelam um quadro ainda pior, de retrocesso: tanto no nível federal e estadual diminuíram o número de mulheres no parlamento, apesar de ter crescido o nº de candidaturas.
É preciso que sejam criadas as condições políticas que permitam essa participação; algumas iniciativas estão sendo tomadas, mas está faltando uma campanha permanente que esclareça a sociedade da importância da representação feminina, falta também um programa pedagógico permanente de educação política.
As causas da baixa representatividade não estão relacionadas a ideia de que “mulher não gosta de política” e por isso não quer concorrer, como justifica a postura machista.
Apesar disso, as mulheres brasileiras têm conquistado espaços na sociedade: atualmente tem uma mulher no cargo de presidente da República, a escolaridade da mulher hoje é maior, a participação na economia e a inserção no mercado de trabalho são crescentes. As mulheres têm presença marcante nos movimentos sociais, muitas assumindo cargos de liderança. É crescente o nº de mulheres chefes de família.
Portanto, foram muitas as conquistas e apesar da sub-representação no cenário político, as mulheres têm hoje presença decisiva nas lutas sociais e revelam capacidade de estar a frente dessas lutas.
No plano da representação parlamentar, para viabilizar a participação da mulher e acabar com a sub-representação, foi criada a Lei de Cotas de Gênero, o que diz essa Lei: “A atual legislação eleitoral estabelece que os partidos devam preencher o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo. Na prática isso garante uma reserva de vagas à candidatura das mulheres. Além disso, determina o repasse de no mínimo 5% dos recursos do fundo partidário para criação de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres. A Lei prevê ainda que pelo menos 10% do tempo de propaganda partidária gratuita seja destinada às mulheres.” (trecho de artigo da Campanha do TSE de incentivo a participação da mulher na política, TSE, 2014).
Apesar dos avanços, essas medidas legais não têm sido suficiente para aumentar o número de mulheres na disputa eleitoral e pouco tem contribuído para mudar o quadro. A verdade é que muitos partidos apenas inscrevem mulheres nas chapas, sem investir de fato nas suas campanhas. Muitos partidos têm usado “mulheres-laranja” para cumprir a cota, e isso exige mais fiscalização e punição. Prática como essa fragiliza mais ainda a democracia e reproduz o autoritarismo e os valores patriarcais.
Representantes do Ministério Público vêm denunciando e punindo legendas pelo descumprimento da Lei.
Sem a iniciativa de fiscalização, punição e, principalmente, reformas institucionais e culturais, a mulher, em especial a mulher negra, não alcançará uma representação mais significativa para além dos 8% a 9% atuais, já que as atuais instituições representativas estão alicerçadas em valores machistas e racistas.
É, portanto, papel do Estado atuar no sentido de garantir direitos às mulheres, e isso significa ampliar as conquistas das mulheres, também significa garantir direitos que sejam traduzidos em investimentos públicos, como a criação de delegacias, hospitais, formação política, creches, cursos profissionalizantes etc.
Diante desse quadro, a reforma política é urgente, ela é a luta pela justa representação e deve propor mudanças estruturais que preveem a inclusão de todos os setores sociais, colocando em dia a soberania popular. Nesse caminho possibilitará a remoção do lixo autoritário ainda tão presente na nossa democracia.
Essa reforma passa pela criação dos espaços de participação que garante o direito do cidadão de debater e decidir sobre a agenda pública e exigir soluções, bem como propor mecanismos institucionais de fiscalização da administração pública e dos mandatos políticos.
A reforma política é a resposta a lacuna normativa do sistema político deixada pela Constituição de 88, o que garantiu a manutenção e reprodução da cultura autoritária. Reformar o sistema político é, portanto, o momento para criar um outro modo de pensar e fazer política, em que a política não se constitua em uma mera atividade administrativa do Estado, mas que seja derivada das ações compartilhadas de cidadãs e cidadãos inseridos numa realidade dialógica e plural, onde a liberdade seja a razão de ser da política. Reformar o sistema político do país é um grande desafio posto a todos nós, é uma oportunidade para que a sociedade tome para si a responsabilidade pelo destino político do país.
O momento atual exige habilidade política para que não seja perdida uma oportunidade histórica para reinventar a política e trazer para o centro do poder, de forma justa e igualitária, todos os segmentos da sociedade.

 

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